terça-feira, 4 de novembro de 2014

Por onde ir?

Andei algum tempo sem me visitar. Acordo-me e deito-me todos os dias longe de mim. Não me conheço nem me sei acabar ou começar tão pouco. Fiz de conta que sabia e fui andando, andando para qualquer lado. Mas agora que aqui torno, vejo para trás a poeira levantada pelo passo atafulhado, como uma caligrafia indecifrável, escrita de olhos fechados. Não sei mais onde estou. Sei que tenho junto de mim. Essa é a paragem onde sempre quero ir ter. Mesmo que não saiba de onde venha nem para onde vou.

Contínuo sem pressas. Mas dentro de mim algo se agita e me tenta agarrar ao chão que não quer escorrer por baixo do pé também já não, já não quer ir tão rápido.

Penso em todos aqueles bancos onde já tantas vezes olhei sem ver. Penso em todas as fotos daqueles bancos de madeira, de ferro, de plástico, coloridos ou cinzentos, molhados ou solarengos, todos se aglomeram num álbum desarrumado na minha cabeça, no meu espírito que se alvoraça assim.


Queria ir contigo para o fim do mundo e lá encontrar enfim o sentido com que tudo sempre se revestiu. Lá sentir que posso ser mais eu e mais tu e mais nós. Lembro aquela música do Chico. Aquela que ouvimos tantas vezes já. Curtinha que me faz sorrir e chorar. Penso em ti aí longe sem estares. Penso em nós. No que querer a seguir. Por onde ir afinal? Filhos, sonhos, desconhecido? Por onde deambular para chegarmos ao norte que é o nosso? Por onde ir para contigo na mão me encontrar e sossegar finalmente. 

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Casa Alugada

Estávamos sentados lado a lado. Na esplanada ainda aquecida pelos raios de sol já gastos da tarde. Intersectava-se ao longe uma televisão quadrada e antiga. Entre a porta meio aberta do restaurante percebia-se que eram horas do noticiário. O som não nos chegava nem tão pouco aquelas legendas em rodapé, tão ao jeito de estação de televisão americana subitamente em voga neste nosso retângulo que por vezes mais parece quadrado de ideias. Ao perceber quem estava na tela, desolhei… como vem sendo hábito já. Perdi o interesse nas coisas deste país. Perdi o interesse na sua (des)governação. Limito-me a estar por aqui, como um inquilino. Pago as contas ao final do mês. Não espero nada. Não conto com nada. Sei que se houver um cano para arranjar “lá por casa” e apesar de estar já incluído na renda, terei de ser eu a mexer-me e a pagar, senão antes do “senhorio” se lembrar de agir fico com a casa inundada e depois ainda irei encontrar uma entrelinha perdida numa das mil cláusulas do contrato de arrendamento, onde sou obrigada a suportar monetariamente danos de esta (e toda) natureza... Limito-me a isso e só. Vou utilizando o espaço que arrendo, a valores que vão subindo e não se podem questionar. Da janela lá de “casa” vejo o sol que, quase todas as manhãs pela vidraça grande da cozinha, insiste a entrar trazendo alento, e do outro lado da rua está marcado o x onde tenho o tesouro mais precioso de todos: a família. Ainda assim, por vezes já penso que se calhar um dia destes ainda mudo de “casa”…  


É então que me lembro do som que nos embala a todos os que partilhamos este “prédio”… o sol que durante a tarde aqueceu as cadeiras de plástico vermelho já por ele consumido. Ainda não temos imposto sobre a exposição solar… vai um dia lembrarem-se disso… Na mesa um pratinho de percebes e 2 cervejas a borbulhar de fresquinhas… olhei para ti, dei um pequeno gole que me deixou um bigodinho branco no lábio e rapidamente esqueci onde moro e especialmente senhor na televisão lá no fundo…

quinta-feira, 7 de agosto de 2014




Nós temos cinco sentidos:

São dois pares e meio de asas.
- Como quereis o equilíbrio?


David Mourão Ferreira


quarta-feira, 30 de julho de 2014

Manhã submersa

Saíste a meu lado esta manhã. Vinhas em compasso forte e contrariavas com boa disposição o meu humor que ia apagado e ensonado pela rua ao teu lado. Chegados ao carro, puxaste-me a mão e disseste, vai com cuidado que eu volto já. Já passou todo o dia quase. O humor já acordou e a vida já se fez maior. Tu foste o melhor momento do dia… ali naquele momento de manhã em que não sei se foi mesmo ou se sonhei.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Reflexos Movimento Circular




Buraco negro








Às vezes parece que me sinto a escrever de trás para frente. Penso nos aborígenes que conheci no nortinho da Austrália, a viver de trás para a frente. Penso nos garotos descalços em África a brincar e a correr de trás para a frente. Penso nas últimas décadas e como têm andado para trás. Ninguém tem culpas. Ninguém tem razão. Todos querem ir para a frente. Mas não conseguem. Só os que subvertem. Só os que sujam e rasgam os princípios. No outro dia a minha Mãe confessava-se preocupada pois achava que um dia os computadores controlariam o mundo. Pensando bem, talvez não fosse assim tão alarmante.

Penso quando foi que começou? Quando foi que ficámos assim? Virados ao contrário, olhando para trás? As teias de favores, trapaças e vigarices que se criam por todo o lado. Os poderes que desmandam e subvertem e abafam. Impunes, sempre. Os ladrões de régua e esquadro, gravatas chiques e nomes sonantes. Sabichões de Honoris Causas que mandam e desmandam em nós. Que terminam com os sonhos de uma vida de gente que gasta tudo o que tem em dignidade e ainda assim vive aprisionada.

Nós por cá nos mantemos. Nós por cá nos alimentamos de sol, de ar e de água turva. Tiram-nos os dedos e os anéis, tiram-nos a qualidade e a segurança. Nós permanecemos por cá, até porque temos cá família, temos cá os amigos, poucos já. Até que um dia também nós, no miradouro de São Pedro de Alcântara, não consigamos mais. Não suportemos mais os anos que andam para a frente, e a vida que regride para trás, cada dia, mês, ano... O trabalho torna-se elogio de loucura. A sua posse ouro. E a sua contemplação déspota. Não foi para isto que se lutou. Todos. Os passos da troika ou os pensamentos filosóficos de Sócrates e outros platões que tal, não sei, não dou cavaco. Mentem. Mancham-se e entre-cruzam os céus empinados, convencidos e despreocupados. Prepotentes. Gente pequena com fome de poder e manipulação. Gente pequena com traumas de infância, que está a hipotecar o futuro da nossas crianças.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

dEspErtarEs


zum zum

Estou-me aqui agora. Neste “zum zum” que me despertou ainda há pouco. Uma awakenig session que me fez pestanejar e ver para dentro da memória, sentir fundo no centro de mim que o mundo está aqui todo para mim e eu, todos os dias, sinto-o escapar dos dedos sem nada fazer.

Consciência de um presente em mute e aquele futuro almejado, antecipando-se em stand-by. Tentam-se planos, mas foge-se, evita-se a conclusão que os fará por fim dissolver. E o livre arbítrio. A possibilidade infindável de correr que nos paralisa as pernas e prende ao chão como raízes de sequoias milenares.


Há dias em que não me sinto perto. Não me saem pensamentos trocados em letras em paredes brancas e linhas invisíveis. São dias consumidos nos intermeios dos nadas. São esgares de resignação de uma vida que se bebe em tragos largos, sem sentir o sabor. Tentando engolir, andar sem saborear. Porquês sem resposta. Vontades que se despediram numa daquelas estradas que se perdeu ao longo do caminho. As pernas e o sorriso são vigorosos. Os amores também. As redes em redor suportam, mas por dentro as vezes aquele “zum zum” que adormece e desperta em vontades próprias e sons impronunciáveis.


quinta-feira, 15 de maio de 2014

A correr

Como se ser assim nos intermeios? Nas entrelinhas e nos dizeres que não são nossos. O que almejar quando tudo parece plano e nada no horizonte vem para se alcançar? O que perder quando não se tem nada para ganhar? Estamos na beira da estrada. Seguimos sempre sem olhar para trás. Vamos indo, correndo aflitos parece para chegar ao fundo, mais longe, ao km seguinte, ao novo restaurante para o qual na realidade não se tem dinheiro. Vamos seguindo numa maratona que bloqueia o cérebro do pensar. Que o desativa lentamente, como que lhe dando um tónico forte que inebria. Mas mesmo assim, com as pernas bambas, cansados, vamos seguindo na beira da estrada. Há uns que passam mais apressados ainda, outros que vão em carros de alta cilindrada. Outros que estão parados. Sem sabermos porquê.  Vamos os dois então. Anda comigo e faz-me correr livre, feliz por estar apenas a correr. Vem e corre comigo só por correr.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Sketch for Summer


Impressão de Fuga

Ando para trás e para a frente na vertigem do que está para ser. Penso no que seria. Tento entender que a vida é isto também. Vivo aqui nesta contingência de horas que medeiam os fins-de-semana. Sacos de tempo insuflados, vazios mas grandes a flutuar no tempo, ocupando das 9h às 9h numa cadeia sucessiva de tempos, momentos e sacos, muitos sacos, sem lógica. Uma cacofonia de sacos e tempos que não consigo entender. Não consigo. Queria ir para conhecer, queria acordar para ser. Queria estar para ajudar e fazer para poder crescer. Vou crescendo é certo. Amorfa? Resignada? Triste? Cinzenta? Almejo a ponta do sol que se desponta por entre as persianas no quarto no início de mais um fim-de-semana.

Melodias de desassossego

Vim aqui hoje com a ideia de entreter o pensamento, para que se desligasse do tempo que teima em não passar. Parece feito em câmara lenta. Parece composto por segundos gordos, opacos, com arestas que dificultam, que custam a escorrer pela estrada fora. Queria algo que me desviasse da atenção que todos os dias tenho que fingir. De me não ser. E já não lembro do último dia em que não olhei para o relógio. Avanço dois passos. Determinados. Determinada. Depois uma voz monótona que me puxa de novo para a rotina e para o desapego de mim. Esqueço-me numa fração de segundo do propósito do instante anterior. Sucumbo e volto invariavelmente à estaca zero. Ainda assim, na minha lembrança, visto-me de hibiscos brancos e sandálias douradas, rasas. Cabelos em desalinho. E sigo para perto do meu desassossego.

Rosa Fragoso

De noite converso em silêncio com a minha avó paterna que me fala das rosas encarnadas que apregoava por Alfama há muitos anos atrás. Que me conta como, no intervalo da escola, o meu pai gostava de papos-secos com marmelada, que ia ganhando dos outros colegas em troca de umas tabuadas feitas em compasso de corrida antes da campainha antes de mais uma aula. Como o cabelo dele era encaracoladinho, assim como o meu.
O seu nome é Rosa Fragoso. Tenho-a sempre para mim. Não tive hipótese de a conhecer, mas de alguma forma sinto como se já tivéssemos sido apresentadas. Pelas poucas fotografias talvez. Lembro-me em pequena de a olhar com curiosidade e de me terem contado que era a minha avó paterna falecida há já muito tempo no dia de natal, havia o meu pai 3 meses de idade. Hoje sinto que a levo comigo numa medalhinha cor de latão invisível ao pescoço. Ainda que não tenha muita informação sobre a sua vida, sem que foi daquelas pessoas que se sentiu infeliz, mas também e essencialmente, feliz. Sei que viveu plena ainda que pouco.
Por vezes sinto o peso da responsabilidade dela nos meus ombros. De me realizar, para a realizar a ela. Por um intento maior. Por uma necessidade inexplicável de um amor que nunca tive hipótese de expressar. Sei que foi uma grande mulher, pobre, condigna, alegre e ingénua, mas não por isso menos forte. Destemida e meiga ao mesmo tempo. Eu queria realizar-te. Descobrir-me, para te deixar orgulhosa de mim. Às vezes sinto-me um pouco como tua filha também.

quarta-feira, 30 de abril de 2014

Quantas vezes se olha sem ver?

Menino Sol

Veio como foi, num piscar de olhos, em que se parou e avançou. Olhar que prendeu e captou. Tudo sucedeu num ápice, que não se pensou mais, que se atirou para um canto perdido do cérebro, debaixo de um tapete curtinho, com pontas de sobra. Foi um momento disperso no escorrer vagaroso do tempo, típico daquele lugar de contrastes. Daqueles em que o mundo se aperta, em que a consciência adormecida até então volta com a força que não nos habituamos que ela tenha. Foi um momento, alguns minutos de compasso de espera num semáforo encarnado.
 
O sol a pique. As folhas de rara vegetação, acastanhada e empoeirada, a opacidade das ondas de ar transparentes a fumegarem, contendo o peso do calor. E este, acumulava-se nos ombros pequenos e franzinos, que tentava proteger, rodopiando-se devagarinho, sentado na sombra que minguava, de um arbusto enfezado, cuja vivacidade fugia do verde para o acastanhado ressequido, denunciando falta de cuidado, falta de zelo e de atenção. Era assim também a sua expressão. Sentado na relva feia, à beira da estrada empacotada de carros, jipes, motos. Empacotada de gente, gente alheada. Ele ali estava, à vista de todos quanto se importassem em ver para além dos olhos abertos. Estava sim, e incomodava. Estranhava a consciência dos que tivessem olhado sem querer. 
 
Tinha uma t-shirt suja, rasgada aqui e ali, pontuada por buracos e buraquinhos. Por baixo, no meio de tantas tonalidades de negligência, distinguia-se um sol amarelinho. E as calças, azuis e lama, mais lama que azul, de um azul que deverá ter sido um dia do azul do vestido dela, que passava e olhou. Olhou com olhos de ver e viu aquilo que tenta, tantas vezes, calar. A expressão dele era de calma desalentada. Era um grito silencioso de ajuda. Ou talvez não fosse. Talvez nem sequer soubesse que haveria outra existência que não aquela, à mercê da sombra, sob o arbusto tosco e feio. Sentado na terra, de pernas traçadas, com os pés descalços, pés perfeitos, dedinhos em escadinha, singelos, vulneráveis e perfeitos. Beleza como nenhum quadro retrata, como nenhuma fotografia consegue pintar. Um menino à beira de uma estrada, só, debaixo do sol quente. Talvez com fome, talvez com medo, talvez com… Apesar de fitar longamente, não decifrou o olhar. O semáforo continuava fechado. A janela de onde o alcançava estava defronte dele agora. Observava-o mais de perto. Sem distância possível à indiferença. Fixava-lhe os olhos enrugados pela expressão, profundos e tão sós.
Queria ter descido, queria ter-lhe dado uma palavra de aconchego. Queria tê-lo levado consigo, comigo… para lhe afagar o rosto e vê-lo dormir numa cama de lençóis lavados, aconchegá-lo em carinhos de alfazema fresca. Dizer-lhe, com certeza, que tudo vai ficar bem. Queria.
 
O semáforo abriu por fim, o rosto foi ficando para trás, lá onde sempre esteve, persistindo no movimento vagaroso, para perseguir a sombra fugaz. Para perseguir a única ponta de conforto da existência que ninguém lhe perguntou se queria.
Avançou cada vez mais e perdeu de vista o menino. Amaldiçoou a pseudo-existência que era a dela, guardou aquele olhar absorto por um momento e chorou. Mais à frente, acabou por o esquecer.

Do Ser (I)

Corre-se de lá para cá. Sem se notar, sem se sentir, vive-se num espírito de alheamento. Olha-se, sem ver, fala-se sem sentido. Vergílio Ferreira dizia que as “palavras são pedras, o que nelas vive é o espírito que por elas passa”; faz tempo já que estão em estado de pedra permanente. Mais parecem peças de Legos desconjuntados pelo chão. Não levam a lado nenhum. Não aproximam o que está perto e não esgrimam causas, nem valores como antes. Generalizam-se em fóruns sociais, chats cibernéticos, petições, mas estão a tornar-se ocas, aguadas, sem conteúdo, sem sabor, sem espírito de acção. Armas de intervenção, sem centelha de fogo, obsoletas e moribundas. 
 

segunda-feira, 28 de abril de 2014

" (...) Dentro do silêncio
Me percebo
Te noto e te beijo
Junto do nascer do sol
Nós dois abraçadinhos na varanda
Na casinha tão sonhada
Encaixados feito caracol (...)"
 
(Thievery Corporation in “Saudade - Nós Dois”)
 

sábado, 5 de abril de 2014


As cores dos quadros de Gaugin em Paupette. Precisava de um pouco desta luxúria descomplexada. Desta metamorfose que Vargas Llosa descreveu tão bem no seu livro "Paraíso na Outra Esquina". Estamos todos cinzentos como o tempo. A chuviscar, a chuviscar, aquela chuvinha que se imiscui por dentro das fibras das roupas e incomoda. Sacode-se, e uma camada de água fininha ensopa-nos a mão num desconforto molhado. E as obras de Gaugin não me saem da cabeça. Aqueles laranjas, vermelhos e roxos, vibrantes como a manga madura que se vai mordendo e deixa escorrer os veios de amarelo-vivo lentamente até ao pescoço. Saudades do sol e seus gloriosos esgares de sutileza bruta que alimentam e saciam.

Precisava de um trago cheio disso agora.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Primavera

Gosto das caras. Gosto dos rostos fortes, marcados pelos raios crus e toscos dos trópicos. Gosto das tranças multicolores das meninas que caminham com grandes mochilas às costas, cheias de lápis de cor de vários feitios, tamanhos, e de esperanças, grandes esperanças. São crianças como eu fui e como todas o são, aqui ou em qualquer parte do mundo. São flores com pés.

Junto


O sol vai alto lá fora. Penso nele, aí nesse lugar a afagar-te os ombros em simples carícias maternais. E, mesmo longe, vejo-te sorrir,  com o rosto ensonado ainda por abrir para o dia que já aí vai solto. E sinto-te perto, a agarrares-me o braço sem pensar, como uma posição que se tomou sem se perceber. Assumes-te nas intermitências quentes que o sol alterna com a brisa agitada e fria. Não que não estejas no meu pensar, mas é mais nos sentidos que te revelas. Com mais veemência para me ires lembrando, que estás sempre aí, a olhar-me sem te distraíres um momento.

Enquanto ia me desfazendo das esperanças, lembrei-me da última vez que as tinha tido. Já estava onde estou, aqui neste sítio onde me vou deixando ser. Também lá atrás tropecei no meu próprio passo. Depois dos habituais primeiros sinais de euforia e de otimismo que parece sempre que me conseguem anular a recordação, vem aquela espécie de silêncio, cheia de silêncios dentro e com eles, a dúvida, a dúvida pintada de vermelho forte. A seguir a ela, a cada momento que passa, de mais silêncios e dúvidas garridas, aquele som que vai ecoando mais e mais, nos tímpanos, como um tambor de uma orquestra em crescendo, sugerindo, para dentro de nós, para com o eu que nos falhou, a revelação, do que não se quis antecipar. Depois o frio da sala deserta e abandonada, no resquício da condição que, mesmo após tantas outras repetições, nos ludibriou de novo. Está frio aqui. Tanto frio. Os sons continuam altos e ressoam opacos e lentos na minha cabeça. Não lhes distingo emissor, nem mensagem. O que fazer? Para onde ir quando o caminho em frente se fecha? Quando as oportunidades, por própria culpa, se esfumam por entre os dedos das nossas mãos? Dói-me por dentro a culpa. O falhanço de novo. Sempre ele que surge para me levar de volta ao meu lugar-comum. Parece que só aí poderei ser. Lembro-me de novo. È nele que terei de abdicar e deixar-me contentar.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Labirintos de Luz

Enquanto ia no táxi, pensava na cidade e na sua luz, nas pessoas de lá para cá, no rio ao fundo a cortejar-me, numa sincronia despropositada. Aí, pensei no sentido da vida e nos seus inquietantes porquês. Como se tivesse 15 ou 16 anos de novo. Pensei em deixar tudo e vir para casa. Ou sucumbir à luz e ficar por ali entretida com ela numa esplanada no empedrado de alguma rua. Há dias em que a luz da cidade me confrange de tão límpida e cristalina, uma tela em branco, limpa à mercê de tantas possibilidades e escolhas. Saí do táxi e apressei-me a atravessar a avenida para não me atrasar. Subi ao sétimo andar e ainda tive tempo para fitar as vidraças retangulares, com vista por cima dos prédios de geometrias harmoniosas e arquiteturas requintadas de outros tempos. Envelhecidos mas belos, como que pintados de fresco com pinceladas transparentes de luminosidade. Respirei a claridade que entrava na janela e senti-me feliz por estar assim, no impasse da minha ambiguidade intermitente que se manifesta quando menos se espera, especialmente em dias como o de hoje onde a cidade se veste destas metamorfoses de luz que ofuscam, aquecem por fora e desassossegam por dentro.
 


Hope

Já sei sim. Que a vida é difícil, e que o mundo está cheio de interesses e coisas vãs. E da crise e de como temos de ser muito agradecidos por termos trabalho, existência, ar para respirar… Já sei. Mas hoje não quero aceitar a falência massificada da sociedade que não dá pontos sem nó e onde o espírito de compromisso e de valor é um vaso de terra bolorenta onde não há mais nada a despontar. Hoje queria tão só viver o mundo na sua medida certa. Queria que ele fosse como o meu pai, justo, meritocrático, compreensivo e observador.

domingo, 9 de março de 2014

Consciência Abstrata

Hoje tornei à minha ambiguidade. Voltei para junto do meu ser que pensa mais do que quer. Que não se quer conformar. Não se compadece com os dias e as horas nele arrumadas em caixas de ovos de cartão canelado, vendidas à dúzia ou meia. Amanhã já começa outra semana com horas dessas assim que se usam e deitam fora. Aos serões de Domingo na televisão, uma espécie de hipnose de purpurinas, parece fazer esquecer o vácuo que fica dos dias que vão passando e não se preenchem com nada que importe. Durante a semana são as novelas vendidas a metro que magnetizam o ecrã e não deixam ninguem de perto desandar. E assim a semana vai passando e nós vamos indo para ali e para aqui com a correnteza que já não nos incomodamos de questionar. Vamos indo, mesmo que às vezes nem sabendo, estejamos a ir de volta para trás.

Ver

 
Os tempos são de procura. De desafio e de esforço. Sem tempo para olhar e ver. É preciso ter-te aqui para me visitar de vez em quando. Escrever-me para chegar mais perto de mim. Foi para isso que vim alimentar-te. Com os despojos da rotina dos dias. A espuma que não se vê, mas que vai se adensando aos pés e aos caules, podendo paralisar. Foi por isso que me decidi. Para o amanhã não ser só um dia a menos, uma cadeira enferrujada onde me sento e olho sem ver.

Dos Retalhos


São pequenos retalhos de realidade sincronizada, sublimados na cadeia ofuscante das rotinas de cada dia. Momentos de celebração silenciosa, de manifestação despropositada. São melódicos chilreares, e botões em flor, são bocas vincadas e olhos lânguidos. Demarcam-se sozinhos, sem alarido ficcionado. Dentadas de realidade simples, pesada ainda que criadora. São saudades tuas, grãos de areia fina no teu pé descalço. Sincronização abstrata e abstraída, despretensiosa do sentido que lhe dá força e condição. Metamorfoses, sussurros de verdade, crua. São momentos avulsos de clarividência inconsciente. Lufadas de imprevisto e genuíno. É sempre aí que te encontro a fitar-me sem saberes.