quarta-feira, 30 de abril de 2014
Menino Sol
Veio
como foi, num piscar de olhos, em que se parou e avançou. Olhar que prendeu e
captou. Tudo sucedeu num ápice, que não se pensou mais, que se atirou para um
canto perdido do cérebro, debaixo de um tapete curtinho, com pontas de sobra. Foi
um momento disperso no escorrer vagaroso do tempo, típico daquele lugar de
contrastes. Daqueles em que o mundo se aperta, em que a consciência adormecida
até então volta com a força que não nos habituamos que ela tenha. Foi um
momento, alguns minutos de compasso de espera num semáforo encarnado.
O sol a pique. As folhas de rara vegetação, acastanhada e empoeirada, a
opacidade das ondas de ar transparentes a fumegarem, contendo o peso do calor.
E este, acumulava-se nos ombros pequenos e franzinos, que tentava proteger,
rodopiando-se devagarinho, sentado na sombra que minguava, de um arbusto enfezado,
cuja vivacidade fugia do verde para o acastanhado ressequido, denunciando falta
de cuidado, falta de zelo e de atenção. Era assim também a sua expressão. Sentado
na relva feia, à beira da estrada empacotada de carros, jipes, motos.
Empacotada de gente, gente alheada. Ele ali estava, à vista de todos quanto se
importassem em ver para além dos olhos abertos. Estava sim, e incomodava.
Estranhava a consciência dos que tivessem olhado sem querer.
Tinha uma t-shirt suja, rasgada aqui e ali, pontuada por buracos e
buraquinhos. Por baixo, no meio de tantas tonalidades de negligência,
distinguia-se um sol amarelinho. E as calças, azuis e lama, mais lama que azul,
de um azul que deverá ter sido um dia do azul do vestido dela, que passava e
olhou. Olhou com olhos de ver e viu aquilo que tenta, tantas vezes, calar. A
expressão dele era de calma desalentada. Era um grito silencioso de ajuda. Ou
talvez não fosse. Talvez nem sequer soubesse que haveria outra existência que
não aquela, à mercê da sombra, sob o arbusto tosco e feio. Sentado na terra, de
pernas traçadas, com os pés descalços, pés perfeitos, dedinhos em escadinha,
singelos, vulneráveis e perfeitos. Beleza como nenhum quadro retrata, como
nenhuma fotografia consegue pintar. Um menino à beira de uma estrada, só,
debaixo do sol quente. Talvez com fome, talvez com medo, talvez com… Apesar de
fitar longamente, não decifrou o olhar. O semáforo continuava fechado. A janela
de onde o alcançava estava defronte dele agora. Observava-o mais de perto. Sem
distância possível à indiferença. Fixava-lhe os olhos enrugados pela expressão,
profundos e tão sós.
Queria ter descido, queria
ter-lhe dado uma palavra de aconchego. Queria tê-lo levado consigo, comigo…
para lhe afagar o rosto e vê-lo dormir numa cama de lençóis lavados,
aconchegá-lo em carinhos de alfazema fresca. Dizer-lhe, com certeza, que tudo
vai ficar bem. Queria.
O semáforo abriu por fim, o rosto
foi ficando para trás, lá onde sempre esteve, persistindo no movimento vagaroso,
para perseguir a sombra fugaz. Para perseguir a única ponta de conforto da
existência que ninguém lhe perguntou se queria.
Avançou cada vez mais e perdeu de
vista o menino. Amaldiçoou a pseudo-existência que era a dela, guardou aquele
olhar absorto por um momento e chorou. Mais à frente, acabou por o esquecer.
Do Ser (I)
Corre-se de lá
para cá. Sem se notar, sem se sentir, vive-se num espírito de alheamento. Olha-se,
sem ver, fala-se sem sentido. Vergílio Ferreira dizia que as “palavras são
pedras, o que nelas vive é o espírito que por elas passa”; faz tempo já que estão
em estado de pedra permanente. Mais parecem peças de Legos
desconjuntados pelo chão. Não levam a lado nenhum. Não aproximam o que está perto e
não esgrimam causas, nem valores como antes. Generalizam-se em fóruns sociais,
chats cibernéticos, petições, mas estão a tornar-se ocas, aguadas, sem
conteúdo, sem sabor, sem espírito de acção. Armas de intervenção, sem centelha
de fogo, obsoletas e moribundas.
segunda-feira, 28 de abril de 2014
sábado, 5 de abril de 2014
As cores dos
quadros de Gaugin em Paupette. Precisava de um pouco desta luxúria
descomplexada. Desta metamorfose que Vargas Llosa descreveu tão bem no seu
livro "Paraíso na Outra Esquina". Estamos todos cinzentos como o
tempo. A chuviscar, a chuviscar, aquela chuvinha que se imiscui por dentro das
fibras das roupas e incomoda. Sacode-se, e uma camada de água fininha ensopa-nos
a mão num desconforto molhado. E as obras de Gaugin não me saem da cabeça.
Aqueles laranjas, vermelhos e roxos, vibrantes como a manga madura que se vai
mordendo e deixa escorrer os veios de amarelo-vivo lentamente até ao pescoço. Saudades
do sol e seus gloriosos esgares de sutileza bruta que alimentam e saciam.
Precisava de um trago cheio disso agora.
Precisava de um trago cheio disso agora.
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